José Neves: “O progresso não para, temos de garantir que ninguém fica para trás”

Em entrevista ao Dinheiro Vivo, o fundador da Farfetch fala sobre a Fundação José Neves e o desafio da nova economia digital

Eum dos homens mais ricos de Portugal, conhecido no mundo como o fundador da Farfetch, mas José Neves está apostado em ser mais do que isso. Decidiu atribuir dois terços da sua fortuna à Fundação José Neves, que ambiciona “transformar Portugal numa sociedade do conhecimento” e elevar Portugal nos índices de desenvolvimento humano da OCDE através da aposta na educação.

Em entrevista ao Dinheiro Vivo assume a preocupação em “acelerar as competências” dos trabalhadores portugueses para a nova economia digital, sobretudo no contexto da pandemia de covid-19. “Não podemos esquecer que há muitas pessoas que não têm as competências mínimas para participar nesta nova economia e isso é muito preocupante, porque corremos o risco de criarmos um exército permanente de desempregados”, diz o empresário, que lembra que esta é uma revolução que está em marcha e não vai parar. “O progresso não pode ser parado, podemos é adaptarmo-nos a ele, participar e garantir que ninguém fica para trás”, frisa.

Esta iniciativa de criar uma fundação e de dar apoio à educação tem alguma coisa a ver com o facto da sua mãe ter sido professora? Isso deu-lhe alguma sensibilidade especial para o tema da educação?

Sim, sem dúvida. Eu era pequeno quando a minha mãe fez o doutoramento no London’s College, na área da pedagofia, mas lembro-me perfeitamente de a ajudar. A ideia da tese era a utilização do computador no ensino da geometria e eu colaborei em pequenas coisas. E sendo ela autora de manuais escolares, essas questões eram sempre conversadas, com certeza terá tido um impacto. Mas penso que mesmo que não tivesse tido essa história familiar, a educação seria, com certeza, o foco da Fundação nesta primeira fase.

Porque eu penso que a maior riqueza de Portugal é o capital humano, o talento. E isso vê-se em todas as áreas, não apenas nos negócios e no digital, onde temos tantas empresas e start-up’s, como uma Outsystem ou uma Feedzai, e tantas outras que criam produtos digitais tecnológicos validados a nível mundial, mas, também, em áreas culturais, desportivas e artísticas… Os portugueses têm um potencial humano incível e esse deve ser o modelo de desenvolvimento económico. Eu costumo dizer que 90% dos países são bonitos, têm todos os seus encantos, sejam históricos, paisagísticos, seja praia, montanha, etc. Nós precisamos de mais, o nosso principal capital somos nós próprios e trabalhar em nós, nas nossas competências, é aquilo que nos pode levar para a frente, criar uma sociedade mais equilibrada e em que o desenvolvimento humano esteja presente. Nos índices de desenvolvimento humano da OCDE ainda estamos um bocadinho para para baixo na tabela, mas se virmos os países escandinavos, caso da Suécia, por exemplo, um país bonito, lá está, mas que não tem recursos naturais e que, através de um acesso equitativo e muito, muito apoiado à educação, a todos os níveis, conseguiu criar uma sociedade de grande mobilidade social, uma sociedade justa e, por consequência, com grandes níveis de desenvolvimento humano.

É esse o exemplo a seguir?

Com certeza. Acho que é um exemplo que todos devemos seguir, principalmente os países pequenos. Não temos os recursos demográficos nem os recursos naturais de outros países, de uma Rússia, uma China ou dos Estados Unidos… Somos pequenos, periféricos, sem recursos naturais, qual é o nosso capital? É o capital humano, é o nosso talento, são as nossas competências. Se não nos tornarmos numa sociedade do conhecimento vai levar mais tempo a atingirmos os níveis de desenvolvimento humano que todos gostaríamos.

Essa não é uma competência do Estado?

Não me envolvo em política. É muito importante começarmos do micro para o macro. O dedo indicador deve estar virado para nós, indivíduos, e daí avançarmos para a nossa pequena comunidade, a empresa onde trabalhamos, a empresa que gerimos. Depois, para as organizações não governamentais e daí, pois com certeza, avançamos para governos e Estado. Penso que é esse o caminho e nós muitas vezes fazemos o contrário. Eu penso que é muito importante os portugueses pensarem nesta questão das competências começando por eles, questionando-se ‘será que eu estou a evoluir nas minhas competências’ ao longo da vida? Hoje em dia não é possível esperarmos tirar uma licenciatura e não aprender mais nada a partir daí. As competências tornam-se obsoletas muito rapidamente. Nesta nova economia digital o índice de obsolescência no digital é de 30% ao ano. Significa que um programador, um analista, um engenheiro de sistemas que esteja desempregado 3 anos e que não faça nada, que esteja em casa à espera do próximo emprego, fica totalmente obsoleto. Nós, como indivíduos, temos de tomar essa responsabilidade em mãos.

A Fundação José Neves vai atribuir 1500 bolsas, em dois anos, e dispõe de cinco milhões para isso. E a seguir?

É um modelo de income share agreements (ISAs) e os cinco milhões são para o que chamamos um projeto-piloto de dois anos, que é o tempo médio dos cursos. Possivelmente só dentro de ano e mio conseguiremos começar a medir os resultados. A ideia é obviamente dotar o programa de mais dinheiro e também de alargar o número de cursos. Começamos com 100 cursos, de 22 instituições portuguesas, entre universidades, politécnicos, bootcamps, etc. na área das pós-graduações, mas a intenção é, num curto espaço de tempo, começarmos a alargar o leque com cursos internacionais, com pós-graduações de duração mais longa, mas tudo isso vai ser definido com base nos resultados deste programa inicial.

E de montantes totais estamos a falar?

Este é um projeto geracional. Queremos criar impacto hoje, com o lançamento do Brighter Future, uma ferramenta que pode criar valor no imediato, e dos ISAs que levarão, no mínimo, dois anos até que as pessoas completem a sua formação e começarmos a ver resultados, na empregabilidade e no seu nível salarial, mas vai haver muitas outras iniciativas nos próximos 10, 20, 30, 50 ou 100 anos. O meu compromisso, em termos de montante, são dois terços de todos os meus ativos durante a minha vida e no momento da minha morte. Espero durar muito tempo, se morrer amanhã é só fazer as contas (risos)… Eu acredito na filantropia mensurável. Eu acredito em filantropia com objetivos claros, pragmáticos, mensuráveis. Transparente. Que possamos dizer quantas pessoas ajudamos, que nível salarial superior ao que tinham atingiram, qual a taxa de reembolso de bolsas, etc, etc, etc. No Brighter Future a mesma coisa, iremos contabilizar quantas pessoas acederam e o feedback que temos. Mediante isso, a Fundação – esses programas e outros – será dotada dos meios que forem necessários.

E que outros projetos e programas tem em mente?

Para já queremos manter a surpresa. Hoje estamos aqui para falar dos ISAs e do Brighter Future, que se inserem nos dois primeiros pilares da Fundação, que são potencializar o acesso à educação e disponibilizar dados para que as pessoas possam gerir as suas carreiras e tomar decisões com base em factos. O terceiro pilar prende-se com a necessidade de repensarmos como é que vai ser a educação do futuro, como é que vai ser uma universidade daqui a 10 ou 20 anos. Não será com certeza o que é hoje. É um pilar em que ainda estamos a trabalhar. O quarto pilar é o do desenvolvimento pessoal. Como é que conseguimos que esta seja sociedade do conhecimento do mundo exterior, mas também do mundo interior. Como é que equilibramos o intelecto com qualidades como a inteligência emocional e as temáticas ligadas aos problemas da saúde mental. Teremos iniciativas nesse domínio, mas não no imediato.

Em que medida é que a pandemia afetou este projeto?

A ideia de criar a fundação surgiu por altura do meu IPO, precisamente há dois anos. Comecei a falar com o Carlos Oliveira e o António Murta nessa altura e, há um ano, começamos a trabalhar efectivamente nestas iniciativas que hoje anunciamos. Em março, acontece a expansão desta pandemia, afectando Portugal também. Convocamos uma reunião – a administração é muito simples, são três pessoas – para decidirmos se faria sentido atrasar ou manter o projeto. A conclusão a que chegamos era que era ainda mais urgente. Estamos numa crise enorme do ponto de vista económico, social e de empregabilidade, porque o modelo económico que estava a funcionar relativamente bem em Portugal vai ter um impacto muito grande, em virtude da covid-19, portanto, as pessoas vão ter que acelerar as suas competências para esta nova economia digital, ainda mais no contexto da pandemia.

Quem não está preparado para a economia digital está condenado a ficar pelo caminho?

Será muito complicado para qualquer trabalhador que não adquira as competências digitais. E não precisam de ser na área das matemáticas, do digital ou da programação. Eu costumo dar o exemplo da Farfetch que tem cinco mil colaboradores e só 30% deles é que são informáticos, especialistas em date science e técnicos. Só 30%. Nós temos pessoas de marketing, de criação de conteúdos editoriais de moda, temos designers gráficos, temos pessoas a trabalhar no customer service e mesmo essas desenvolveram algum tipo de competências que lhes permite participar na economia digital. Não podemos esquecer que há muitas outras que não têm as competências mínimas para participar nesta nova economia e isso é muito preocupante, porque corremos o risco de criarmos um exército permanente de desempregados. Na Revolução Industrial a transição foi muito mais lenta e foi muito mais fácil transformar um trabalhador do sector primário para o secundário. É muito mais complicado adaptar rapidamente um país, uma sociedade inteira, a abraçar esta nova economia digital, mas que está aqui para ficar. Disso não há dúvida nenhuma. Já dizia o autor do Sapiens que o que o ser humano inventa não pode ser desinventado. O progresso não pode ser parado. Podemos é adaptarmo-nos a ele, participar e garantir que ninguém fica para trás.

As candidaturas às bolsas já abriram, quantas já receberam?

Não posso especificar, mas bastantes. Já temos um pipeline interessante.

Surpreendeu-o a adesão?

Ficamos surpresos, sim, tanto pelo numero de visitas ao site como pela quantidade de candidaturas que já está a entrar.

Porque escolheu o Porto para sede da fundação?

A sede da Fundação é virtual, é o site joseneves.org em que vamos criar conteúdos e tentar criar debate, trocas de ideias, artigos de opinião e entrevistas quer, com personalidades nacionais como internacionais. É essa a ideia, termos uma sede digital mais do que física. Os escritórios são aqui no Porto, fisicamente, só por razões históricas. Porque foi a cidade em que eu nasci e é perto de Braga, a cidade em que o Carlos nasceu.

Espera com isto deixar uma marca na educação em Portugal?

Com certeza, mas, para nós, o sucesso mede-se em décadas. Queremos, daqui por 10 ou 20 anos, olharmos para a realidade da OCDE e vermos que Portugal subiu na tabela e está mais próximos dos países escandinavos, do ponto de vista do desenvolvimento humano. E que a nossa Fundação tenha tido um humilde contributo para isso.